13/11/2025

O Consentimento do Flagranteado na Produção de Provas

O consentimento no Direito Penal é tema bastante complexo, podendo ser analisado por várias óticas, como os elementos do conceito analítico de crime, a depender do contexto e do bem jurídico envolvido. Neste artigo, mais precisamente, pretende-se analisar o consentimento do flagranteado nos primeiros momentos da autoria delitiva.

Inicialmente, cumpre esclarecer que o significado de consentimento, em nível histórico, nos remete ao jurista romano Ulpiano (aprox. 170–228 d.C.), no livro 47 do Digesto (D. 47. 10. 1. 5), onde se encontra a afirmação: "Nulla iniuria est, quae in volentem fiat", isto é, segundo a tradução de Flávia Siqueira, "o que ocorre com o consentimento do ofendido não constitui injusto". E ainda, segundo a autora, compreende-se como "iniuria" não apenas a injúria em sentido estrito, mas qualquer violação de direitos da personalidade.

Não obstante, do ponto de vista de um processo penal democrático e à luz de um sistema acusatório, o consentimento do flagranteado no momento da suposta autoria delitiva não pode ser mera alegação estatal, mas deve ser analisado com rigor formal. O Estado acusador é quem deve produzir provas a respeito desse consentimento, afastando do julgador qualquer espécie de vício.

Na jurisprudência pátria, têm-se dois casos emblemáticos que ilustram essa situação: o consentimento do proprietário para entrada sem mandado em sua residência e o fornecimento de senha para acesso ao aparelho celular no momento da abordagem.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem construído entendimento jurisprudencial no sentido de que, para admissão do argumento do consentimento do proprietário, é necessária a produção de provas pela acusação que consigam ir além de meras alegações. Destaca-se, neste ponto, trecho do voto do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca no AgRg no Habeas Corpus nº 774.349/SC:

“A inovação leva em conta que, apesar da palavra do policial estar imbuída de fé pública, a posição do suspeito em situações flagranciais é de vulnerabilidade, não podendo ser desconsiderado o forte estresse a que está submetido, quão menos a influência exercida pela autoridade policial”

Isso nos permite dizer que, no momento da abordagem, no meio da rua, ou mesmo em sede de interrogatório sem a presença de defensor, o Estado-Juiz deve demandar cuidado redobrado ao analisar a legalidade dessas diligências, especialmente porque envolve um consentimento que dispõe de direitos fundamentais, devendo ser interpretado, a meu ver, à luz do estado de inocência.

Em outro caso, o Ministro Sebastião Reis Júnior, nos EDcl no AgRg no Habeas Corpus nº 831.045/SP, analisou a legalidade da obtenção de prova a partir de acesso a aplicativo de mensagens do telefone celular do então embargante, que teria consentido o acesso ao aparelho. Esse consentimento baseava-se no depoimento do policial militar que atendeu à ocorrência.

De acordo com o ministro relator dos embargos citados que não é idônea a comprovação da voluntariedade do consentimento exclusivamente com base no depoimento dos agentes policiais que atenderam à ocorrência. Em seu entender, deve ser feita, sempre que possível, com testemunhas e com registro da operação por meio de recursos audiovisuais. E destaca-se do voto: "Sendo que, pairando dúvidas quanto à voluntariedade do consentimento, devem ser dirimidas em favor do acusado".

À luz da doutrina de Claus Roxin e Luis Greco, quanto à manifestação do consentimento como pressuposto de validade, tem-se:

“Um consentimento em sentido jurídico pressupõe alguma manifestação externa (a chamada teoria intermediária ou conciliadora). Por sua vez, a teoria da declaração da vontade (melhor: teoria do negócio jurídico) fundada por Zitelmann, hoje abandonada pela generalidade, interpretou o consentimento como um negócio jurídico de Direito Privado, por meio do qual é concedido ao agente um direito revogável de intervenção. Entretanto, O consentimento não é um compromisso (ainda que revogável) do titular do direito, mas, ao contrário, exercício da liberdade geral de ação no sentido do art. 2 I GG (→ cf. nm. 14), que não está sujeito às regras do Direito Civil; além disso, bens jurídicos personalíssimos, em muitos casos, não podem ser objeto de negócios jurídicos.

[...]

Não obstante, a teoria da direção da vontade, que é diametralmente oposta à teoria do negócio jurídico, também deve ser rejeitada. De acordo com ela, o consentimento consiste “no acontecimento puramente mental de renúncia à vontade de proteção do direito. A aceitação interna é, portanto, suficiente, sem que haja necessidade de que ela se manifeste externamente.” De fato, o consentimento expressa a vontade interna do titular do bem jurídico; mas um pensamento que não é manifestado não constitui expressão da vontade e, como não pode ser verificado, não é um suporte adequado para consequências jurídicas. Rönnau objeta que isso negligenciaria a ideia fundamental do consentimento, enquanto uma atuação da liberdade do titular do bem. Mas um pensamento que permanece no forum internum não é uma atuação juridicamente relevante da liberdade! E o argumento adicional de que a existência de um consentimento não deveria depender de "uma mera questão probatória" o falha em reconhecer que o Direito somente pode basear suas decisões de modo razoável em critérios que são, ao menos em princípio, passíveis de prova. Isso inexiste no caso de pensamentos que não encontraram expressão no mundo exterior.”

(Grifo meu)

A doutrina mencionada nos norteia com relação a manifestação do consentimento e nos arremete a questões técnicas desse consentir, o que, ao meu ver, pode servir ao fim e ao cabo para fundamentar as decisões dos tribunais superiores para fixação de um tema a respeito dessa situação que ocorre cotidianamente no ordenamento jurídico nacional. 

Diante do exposto, conclui-se que o consentimento do flagranteado não pode ser presumido nem aceito com base em meras alegações estatais. Exige-se rigor formal na comprovação de sua voluntariedade, especialmente em situações de vulnerabilidade e assimetria de poder. A jurisprudência do STJ e a doutrina penal moderna convergem no sentido de que a manifestação de vontade deve ser externada e comprovada por meios idôneos, preferencialmente com registro audiovisual ou testemunhal. Em caso de dúvida, prevalece o princípio da presunção de inocência e a proteção aos direitos fundamentais do acusado. Portanto, o consentimento, ainda que válido em tese, deve ser analisado com cautela, assegurando-se que represente efetiva e livre manifestação de vontade.

Lucas Martins Vieira é advogado criminalista, especialista em Ciências Penais pela Faculdade Mineira de Direito, Diretor de Pesquisa do Instituto de Ciências Penais Jovem, autor na revista Conjur, Coordenador do Grupo Temático de Direito Penal da OAB Jovem de Minas Gerais e Vice-Presidente da 36ª Subseção da OAB/MG.

Belo Horizonte | Minas Gerais

(31) 97174-1956

fale@icp.org.br