05/09/2025

A validade do reconhecimento pessoal no processo penal: mera recomendação ou regra absoluta?

A validade do reconhecimento pessoal no processo penal vem sendo objeto de debate jurídico relevante, sobretudo diante da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a Repercussão Geral do tema e está prestes a decidir, no âmbito do Tema 1.380, se o reconhecimento pessoal realizado sem observância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) viola as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas. O caso concreto que levou à análise no Supremo Tribunal Federal (STF) refere-se ao Recurso Extraordinário no Agravo (ARE) 1.467.470, no qual se questiona a condenação de dois indivíduos com base exclusivamente no reconhecimento pessoal da vítima, sem cumprimento dos requisitos legais, e sem outras provas que confirmassem a autoria.

O reconhecimento pessoal consiste em um meio de prova sensível, dependente da memória da vítima, frequentemente afetada por traumas, e suscetível a vieses, o que torna a sua utilização arriscada, especialmente em delitos graves. O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, destacou a fragilidade desse tipo de prova, evidenciada em estudos que apontam que até 83% dos casos de reconhecimento equivocado no estado do Rio de Janeiro resultaram na punição de pessoas negras, demonstrando o potencial reforço de estereótipos e desigualdade na justiça criminal, ressaltando que essa questão está diretamente ligada à efetividade dos direitos fundamentais e à garantia de investigações e julgamentos justos e igualitários.

Com base nisso, muitos aplicadores do direito passaram a reconhecer como ilícita a prova que derivasse de um reconhecimento pessoal que desrespeitasse o rito previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), sob o entendimento de que o seu não cumprimento comprometeria a confiabilidade da identificação. Nesse sentido, a Resolução 484/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já havia direcionado critérios detalhados para a realização do reconhecimento pessoal, reforçando a necessidade de um maior rigor no procedimento.

O reconhecimento da Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 1º de março de 2025, reforça a importância jurídica e social da discussão, conferindo caráter vinculante à futura decisão, com impacto direto em todos os processos semelhantes. À vista disso, o voto do Relator enfatizou que a falta de um rito legislado afeta as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da incolumidade das provas, materializando potencial cenário de injustiça.

No entanto, admite-se, em determinados entendimentos, que o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) possua a função de uma mera recomendação, afirmando que o seu rito deve ser aplicado somente na hipótese em que houver necessidade. Dessa forma, nos casos em que o reconhecimento pessoal não possua vícios relevantes, tenha a confirmação das vítimas em juízo e a presença de outras provas, como por exemplo os depoimentos dos policiais militares que participaram da ocorrência, a inobservância das formalidades do art. 226 do Código de Processo Penal (CPP), por si só, não invalidaria a prova produzida.

Nesse ponto de vista, os estudiosos que entendem pela relativização do referido rito argumentam que estaria expresso no próprio artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) que o reconhecimento pessoal seria realizado conforme os seus incisos somente nos casos em que houvesse a necessidade, ou seja, fazendo com que ele tivesse apenas um caráter subsidiário para a aferição da verdade real. Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal (STF) atualmente sustenta que eventuais irregularidades na fase inquisitorial não comprometem o processo, desde que o reconhecimento seja reafirmado em juízo, sob o crivo do contraditório, ampla defesa e conjunto probatório convergente.

Assim, pode-se reconhecer que o rito do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) funciona como um parâmetro orientador, não necessariamente vinculante em todos os casos, especialmente quando há confirmação em juízo e outras provas independentes. No entanto, tal relativização passa agora a depender da interpretação definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF), que pode vir a afirmar que o descumprimento do protocolo constitui violação constitucional, invalidando o reconhecimento em si ou exigindo sua corroboração por outras provas.

À vista disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também passa por uma dualidade entre um entendimento mais garantista, que exige estrita observância das formalidades sob pena de nulidade, e uma postura mais flexível, que considera possível a validade do reconhecimento, mesmo que sem perfeita observância formal, desde que existam outros elementos probatórios robustos.

Sobre o tema o Superior Tribunal de Justiça preleciona no Agravo Regimental em Recurso Especial nº 1957634/RS, sob Relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, na Sexta Turma, que é legítimo o reconhecimento pessoal ainda quando realizado de modo diverso do previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, servindo o paradigma legal como mera recomendação. No caso em específico, foi considerado que o reconhecimento fotográfico de acusados, quando ratificados em juízo, sob a garantia do contraditório e ampla defesa, pode servir como meio idôneo de prova para lastrear a condenação, uma vez que a autoria delitiva não foi amparada, exclusivamente, no reconhecimento pessoal realizado na fase do inquérito policial.

Em compensação, no julgamento do REsp 1.953.602/SP, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese em recurso repetitivo sobre o alcance do artigo 226 do Código de Processo Penal, consolidando a obrigatoriedade de observância das suas formalidades em reconhecimentos pessoais e fotográficos, tanto na fase inquisitorial quanto em juízo. A Corte firmou que o descumprimento do procedimento legal torna o ato inválido, não podendo servir de base para condenação, decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia ou pronúncia.

Ainda, destacou que o reconhecimento é prova irrepetível e que um ato inicial falho contamina os subsequentes, mesmo que estes observem posteriormente as regras legais, sendo também reafirmada a necessidade de alinhamento de pessoas semelhantes ao suspeito, sob pena de esvaziar a confiabilidade do ato. Diante disso, o Superior Tribunal reforçou que o magistrado pode formar convicção da autoria apenas a partir de provas independentes e autônomas, desvinculadas do reconhecimento viciado.

Assim, em guinada jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça passou a entender que as regras do artigo 226 do Código de Processo Penal constituem garantia mínima ao acusado e não mera recomendação, estabelecendo que o reconhecimento irregular não possui valor probatório e não pode sustentar decisões restritivas de liberdade, como uma forma de buscar maior efetividade dos direitos fundamentais e à garantia de investigações e julgamentos mais justos.

Em contrapartida, embora o Superior Tribunal de Justiça atualmente entenda pela observância integral das formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal como requisito de validade da prova, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem admitindo em seus julgados uma certa relativização, tratando a inobservância como nulidade relativa, superável se houver outras provas seguras no processo.

Todavia, com a repercussão geral reconhecida sobre o assunto, caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF) apreciar o mérito do Recurso Extraordinário no Agravo (ARE) nº 1467470, que contesta decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) responsável por manter a condenação de dois réus pelo crime de roubo de veículo mediante o uso de arma de fogo, fundamentada exclusivamente no reconhecimento pessoal. Assim, o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesse julgamento servirá de orientação para as demais instâncias do Judiciário em casos análogos.

Referências

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 1.903.858/DF. Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 16 dez. 2021, DJe 16 dez. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp n. 1.957.634/RS. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 5 abr. 2022, DJe 8 abr. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.953.602/SP. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 11 jun. 2025, DJe 30 jun. 2025.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF vai decidir sobre validade de reconhecimento pessoal em processo penal. Portal de Notícias do STF, Brasília, 17 mar. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-vai-decidir-sobre-validade-de-reconhecimento-pessoal-em-processo-penal/. Acesso em: 4 set. 2025.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Criminal n. 1.0000.24.367130-2/001. Rel. Des. Nelson Missias de Morais. 2ª Câmara Criminal, julgado em 26 jun. 2025, publicação da súmula em 27 jun. 2025.

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela PUC Minas. Atua no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Membro da Comissão de Pesquisa do Instituto de Ciências Penais (ICP).

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