O Acordo de Não Persecução Penal – ANPP foi positivado no nosso ordenamento jurídico a partir da Lei nº 13.964/2019 – Pacote Anticrime [1], como um mecanismo da justiça penal negocial, que busca resolver conflitos de forma consensual, promovendo soluções alternativas em vez da persecução penal tradicional, com consequente desafogamento da população carcerária e do próprio sistema penal como um todo [2].
Inspirado no modelo norte-americano de plea-bargaining [3], o ANPP é um mecanismo negocial realizado entre o Ministério Público e o indivíduo investigado, o qual, a partir da fixação e aceite de condições previamente estabelecidas, obsta a instauração da persecução penal e, consequentemente, se integralmente cumpridas, resulta na extinção da punibilidade do agente [4].
Ocorre que, desde a sua positivação, surgiu-se uma nebulosa discussão acerca da possibilidade de sua aplicação retroativa, sobretudo em razão da sua natureza jurídica de negócio jurídico pré-processual, o que acabava por ocasionar vários posicionamentos divergentes em diversos tribunais do país.
Nesse sentido, ciente da problemática, o Supremo Tribunal Federal, de forma a assegurar as garantias e os direitos fundamentais do indivíduo, colocou uma pá de cal na questão e firmou, dentre outras teses, a possibilidade de “celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado” (HC 185.913) [5].
Alinhando-se ao posicionamento da Suprema Corte, a Terceira Seção do Tribunal da Cidadania, por meio do julgamento do REsp 1.890.343/SC (Tema Repetitivo nº 1.098) [6], consolidou o entendimento no âmbito dos tribunais superiores, ao definir que “é cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação”.
Não se pode fechar os olhos para a grandeza da decisão do Supremo Tribunal Federal, que atuou como um divisor de águas na construção de um modelo de justiça penal mais eficiente, à luz dos ditames constitucionais. É hialina a percepção de que, ao reconhecer a possibilidade de aplicação retroativa do ANPP, o Pretório Excelso reafirmou a primazia dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo frente ao jus puniendi estatal, rompendo com uma lógica punitivista que, historicamente, assombra o sistema criminal brasileiro.
Tal medida é salutar para pôr fim às manobras do Ministério Público, que pautado por um inflexível censo de justiça, após receber os elementos de informação do fato criminoso contidos no inquérito policial, vinha “jogando com a liberdade do agente”, na medida em que, engenhosamente, buscava tipificar a conduta ilícita de forma mais austera, submetendo o indivíduo às inseguranças de um processo penal, com o fim de obstar a possibilidade de celebração do ANPP, que se mostrava impossibilitado após o início da persecução penal.
É diante deste infeliz cenário que percebermos a relevância desta decisão. Não se pode olvidar que a Constituição Federal, em seu art. 1º [7], elencou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da carta constitucional. Assim, questiona-se, como era possível que o nosso sistema jurídico permitia a perpetuação de uma injustiça sistêmica, que negava ao indivíduo investigado/processado o acesso a um instrumento legítimo de solução consensual do conflito, com evidente prejuízo à sua liberdade e à sua dignidade?
É de conhecimento amplo que a submissão de um indivíduo como réu em um processo penal, por si só, já acarreta aflição e o medo, o que, diga-se de passagem, leva qualquer pessoa a um desespero incompreensível. Nessa senda, é imperioso reafirmar, aqui, a premissa de que a submissão de um indivíduo às mazelas de um processo penal não pode, jamais, ser a regra do ordenamento jurídico brasileiro.
O ANPP não é uma discricionariedade do órgão ministerial, que a partir da sua própria conveniência pessoal, decidirá se oferecerá ou não o referido acordo. Pelo contrário. O Acordo de Não Persecução Penal deve ser entendido como um poder-dever do Ministério Público, que deve analisar as circunstâncias do caso concreto, de modo a verificar a necessidade e suficiência do referido acordo para a repreensão da conduta ilícita [8].
Nesse sentido, verifica-se que a decisão do Tribunal Constitucional se impõe como imperativo de justiça frente ao ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo em razão da triste realidade de que inúmeros indivíduos já foram privados da possibilidade de celebrar o acordo em razão da capitulação penal dada pelo Ministério Público na denúncia, o que, de fato, inviabilizou o cumprimento dos requisitos formais do art. 28-A do CPP, ainda que as circunstâncias fáticas se amoldassem às hipóteses legais [9-10].
De mais a mais, vale consignar que ao possibilitar a aplicação retroativa do ANPP, os tribunais superiores contribuíram diretamente para a racionalização do sistema criminal, à luz do princípio da intervenção mínima, com fins a alcançar um desafogamento do Poder Judiciário, cuja sobrecarga processual compromete não apenas a celeridade, mas também a própria qualidade da prestação jurisdicional.
Assim, urge destacar que o entendimento fixado pelos tribunais superiores deve ser prestigiado, de modo a se repensar a ampla discricionariedade conferida ao Ministério Público na condução da proposta do acordo. A recusa injustificada do Parquet em ofertar o ANPP não é um fato isolado, trata-se, sabemos, de uma prática corriqueira que compromete as finalidades do próprio acordo, que já surge no ordenamento com o trabalho hercúleo de tentar controlar o assaz aumento de demandas judiciais na seara penal.
Além disso, registra-se que ainda que o aludido acordo, quiçá, não seja o meio mais eficiente para combater a crise sistêmica de abarrotamento processual que assola o sistema criminal brasileiro, – aqui não adentramos no mérito acerca da suficiência do referido instrumento para a prevenção e repreensão de crimes –, é inegável que a possibilidade de aplicação retroativa do ANPP é um grande passo para a reafirmação do compromisso do ordenamento jurídico com a efetividade das garantias fundamentais e a racionalização do sistema criminal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm. Acesso em: 08 de jun. de 2025.
[2] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal: À luz da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). 1. Ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
[3] LOPES, Aury Jr. Adoção do Plea Bargaining no projeto “anticrime”: Remédio ou veneno? Conjur, 22 fev. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-22/limite-penal-adocao-plea-bargaining-projeto-anticrimeremedio-ou-veneno/. Acesso em: 08 de jun. de 2025.
[4] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus 185.913. Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, Brasília/DF, julgado em 18/09/2024, DJe 18/11/2024.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.890.343/SC (Tema Repetitivo 1098). Relator(a): Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 23/10/2024, DJe 28/10/2024.
[7] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08 de jun. de 2025.
[8] LUCCHESI, Guilherme Brenner; DE OLIVEIRA, Marlus. Sobre a Discricionariedade do Ministério Público no ANPP e o seu controle jurisdicional: uma proposta pela legalidade. Boletim IBCRIM, v. 29, n. 344, 2021.
[9] BRASIL. Decreto-lei 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em 08 de jun. de 2025.
[10] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. Ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Ciências Penais pelo IEC-PUC/Minas. Estagiário de Pós-graduação no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Associado e Membro da Comissão de Pesquisa da Comissão Jovem do Instituto de Ciências Penais (ICP).