26/05/2025

BREVES NOTAS SOBRE O JULGAMENTO DOS ATOS DE 08 DE JANEIRO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O dia 08/01/2023 ficará marcado na história pelo ataque ocorrido em Brasília a edifícios públicos e a símbolos da democracia brasileira. A gravidade dos atos não pode ser minimizada e muito menos relativizada, notadamente a partir da reafirmação da importância do respeito ao Estado Democrático de Direito e à ordem constitucional.[1]

Contudo, impõe-se a análise crítica dos equívocos que vem marcando o julgamento dos atos de 08 de Janeiro. O que se observa é um cenário paradoxalmente incompatível com valores essenciais à democracia – cuja proteção almeja-se através da punição – e uma sistemática afronta a princípios caros a um Estado Democrático de Direito, como ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), ao contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, da CF), bem como ao direito a um julgamento imparcial e equidistante (art. 5º, LIV, da CF). Não se pretende esgotar a temática, mas apontar aqueles que parecem ser os aspectos de maior gravidade.

A primeira questão que causa incômodo é o afastamento do juiz das garantias no âmbito das causas atinentes aos atos do 08 de Janeiro [2]. Registra-se não se desconhecer que ao julgar a ADI 6.298 o e. STF entendeu pela incompatibilidade do instituto com o procedimento dos processos de competência originária dos tribunais (Lei 8.038/90).

Não obstante, o entendimento não parece acertado. O juiz das garantias foi adequadamente instituído para, sob a ótica da teoria da dissonância cognitiva, minimizar os impactos sobre os magistrados atuantes tanto na fase investigatória quanto na ação penal. Busca-se mitigar o efeito perseverança, com a superestimação das informações anteriormente tidas como corretas, bem como da busca seletiva de informações, onde se procura predominantemente informações que confirmem a hipotese anterior. [3]

O magistrado que atua na fase investigatória decide, com base nos elementos informativos até então colhidos, sobre questões como medidas cautelares, quebras de sigilo telefônico e bancário, buscas e apreensões, dentre outras.

Nesse contexto, existe, ainda que inconscientemente, uma tendência de que o juiz seja contaminado pelos elementos informativos – e não de prova, estes produzidos no processo  – previamente analisados. [4]

De forma involuntária, há uma propensão à confirmação das decisões anteriormente proferidas (autoconfirmação). Ou seja, a título de exemplo, o magistrado que durante a investigação decreta uma prisão preventiva, entendendo haver indícios suficientes de autoria delitiva, tende a decidir pela condenação ao final do processo.

Diante disso, especialmente considerando que nas ações competência originária do e. STF há mínima possibilidade de recursos e pouco espaço para a revisão de atos decisórios, o juiz das garantias seria fundamental para potencializar os direitos dos investigados. Por isso, lamenta-se o afastamento do instituto no julgamento dos atos de 08 de janeiro.

A segunda questão que traz inquietude é o reconhecimento da prevenção do Ministro Alexandre de Moraes. Data vênia, deveria ser reconhecido o impedimento do Ministro para o julgamento da trama golpista, na medida em que há nos autos referência expressa a um suposto plano de assassiná-lo. Como o e. Ministro Relator seria vítima direta, ele deveria se afastar ou ser afastado do julgamento[1]. Isso, certamente, traria maior legitimidade à persecução penal dos responsáveis pela intentona golpista.

Por fim, impõe-se a crítica à decisão de não se proceder à intimação das testemunhas de defesa, que deverão ser conduzidas pelos procuradores dos acusados às audiências.

A decisão lançou mão do art. 455 do CPC, aplicado por analogia. Contudo, tratando-se de processo penal, devem ser maximizados o contraditório e a ampla defesa, sendo de rigor a aplicação do art.396-A do CPP, com a intimação de todas as testemunhas arroladas cuja intimação foi requerida, sob pena de, inclusive, afronta à paridade de armas.

Como o CPP possui previsão expressa sobre a intimação das testemunhas de defesa no art. 396-A, respeitosamente, não há sentido em aplicar dispositivo legal do CPC, o que só deve ocorrer subsidiariamente, quando insuficientes as normas do diploma processual penal.

Tal decisão gera preocupação pelo efeito cascata que pode causar às instâncias inferiores. A aplicação irrestrita do entendimento poderia, por exemplo, culminar em verdadeiro cenário caótico nas defensorias públicas de nosso país, responsáveis pela maior parte das defesas criminais, que teriam de realizar o árduo trabalho de localizar testemunhas.

Assim, não há como recusar a necessidade de uma punição aos envolvidos nos crimes praticados nos atos do 08 de janeiro. Mas também irrecusável é a premissa de que nem tudo pode ser feito a pretexto da defesa da democracia, em postura que contraria as suas próprias diretrizes. Ao contrário, é hora de reafirmar os valores constitucionais, vez que, como já dizia Goldschmidt, “a estrutura do processo penal de uma nação nada mais é do que um termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua constituição”[6], e, no momento, o e. STF, data vênia, pende ao arbítrio.

REFERÊNCIAS:

[1] No mesmo sentido, cf. CAMPOS, JR. Maurício de Oliveira. Imperdóavel. Correio Brasiliense, Seção Opinião,  Brasília, 3 jan. 2023. Disponível em:

https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/01/5065614-artigo-imperdoavel.html. Acesso em 16 abr. 2025.

 

[2] Sobre o juiz das garantias, cf. MOURA, Maria Thereza de Assis; BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Coords.). Juiz das garantias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.

 

[3] Sobre a teoria da dissonância cognitiva em contexto processual, apontando-se o efeito perseverança e a busca seletiva de informações como efeitos para diminuir a tensão psíquica, cf. SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In: Estudos de Direito Penal e Direito Processual Penal e Filosofia do Direito. Coordenação: Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013, pp. 205 a 221.

 

[4] Em consonância, registra-se a conclusão das pesquisas empíricas de Schünemann, CF.  Bernd. SCHÜNEMANN...p.221.

 

[5] Nesse sentido foi o voto divergente proferido pelo i. Ministro André Mendonça, que votou pela declaração de impedimento do i. Ministro Alexandre de Moraes.

 

[6] GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Conferencias dadas em la Universidad de Madrid em los meses de diciembre de 1934 y enero, febrero y marzo de 1935. Buenos Aires: BdeF, 2016, p. 73.

Pedro Gilbert de Lima -  Advogado Criminalista. Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Associado ao Instituto de Ciências Penais.

Belo Horizonte | Minas Gerais

(31) 97174-1956

fale@icp.org.br