14/04/2025

Súmula 664 do STJ: do possível reconhecimento da subsidiariedade entre as condutas dos arts. 306 e 309 do Código de Trânsito Brasileiro

No âmbito de um ordenamento jurídico em constante e desenfreado expansionismo na criminalização de comportamentos, o intérprete pode se deparar com a possibilidade de subsunção de diversos tipos penais sobrepostos a uma ou mais condutas relacionadas entre si. É o que a doutrina convenciona denominar conflito aparente entre leis penais[1].

A pluralidade de tipos incidentes, conforme leciona Frederico Horta, pode decorrer tanto de uma evidente subsunção formal de ambos à mesma conduta, quanto de relações lógicas ou valorativas entre eles. Em qualquer caso, não se pode concluir que existem razões distintas para a punição de um mesmo fato, mas sim que em cada uma das normas há fundamentos diversos para a incriminação de um mesmo conteúdo de injusto[2].

Admitir uma dupla incidência típico-penal (e, por conseguinte, dupla consequência penal) pela mesma conduta, além de compreender evidente bis in idem, também implica uma violação direta ao princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da CFRB/88), obstando o conhecimento do cidadão acerca de quais comportamentos caracterizam-se como crime e, essencialmente, sua previsibilidade quanto à pena consequente.

O conflito denomina-se aparente justamente porque deverá prevalecer aquele tipo penal que melhor se amolda à conduta, uma vez que reconhece seu desvalor ou significado social de forma mais abrangente ou completa.

São elencados pela doutrina alguns critérios para distinguir as relações que podem advir entre diferentes tipos penais, sendo que a partir de cada um desses critérios também se pode identificar a norma que deve prevalecer. É o caso dos critérios da especialidade, subsidiariedade e consunção[3].

As considerações até então aqui deduzidas mostram-se pertinentes na medida em que este artigo tem como objetivo precípuo enaltecer uma crítica ao enunciado da Súmula n.º 664 do Superior Tribunal de Justiça, cujo teor expressa a inaplicabilidade da consunção "entre o delito de embriaguez ao volante e o de condução de veículo automotor sem habilitação"[4].

O que se depreende da razão de decidir dos leading cases que originaram o entendimento sumular[5] é que o delito tipificado pelo art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503/97) não constitui um meio de preparação ou execução daquele tipificado no art. 306, tratando-se em realidade de infrações penais autônomas.

Num primeiro momento, causa estranheza o fato de o STJ ter afastado por completo a tese de consunção a partir de uma análise abstrata entre ambos tipos penais, quando, em realidade, a relação que se estabelece entre os delitos consunto e consuntivo somente pode ser examinada no caso concreto, e não no campo da abstração[6].

A Corte de Justiça equivoca-se sobremaneira, porque contribui para a rejeição de eventuais teses defensivas nesse sentido, sem que ao menos haja a análise do caso concreto acerca do papel desempenhado por cada conduta no iter criminis, a fim de se concluir se a potencialidade lesiva de uma se esgota na outra enquanto antefactum impunível, crime progressivo ou postfactum impunível (espécies de consunção[7]).

De toda forma, não se pretende nesta oportunidade avançar no estudo da consunção, mas sim advertir o leitor para uma segunda questão.

Mesmo que o entendimento sumular tenha surgido em recursos de natureza extraordinária, opera-se nos recursos defensivos a ampla devolutividade, cabendo ao Tribunal resolver a questão “aplicando o direito à espécie" (para utilizar a expressão da Súmula 456 do STF[8] e do art. 255, §5º, do Regimento Interno do STJ[9]). Isso significa que a interposição de recurso defensivo devolve integralmente o conhecimento da causa ao Tribunal ad quem, podendo este inclusive reafirmar, infirmar ou alterar os fundamentos da decisão combatida[10], desde que respeitado o non reformatio in pejus.

Para ser mais preciso, o STJ, uma vez provocado pela defesa com a tese de consunção, não apenas poderia, como também deveria identificar possíveis outras relações entre os tipos penais em questão, no âmbito do conflito aparente entre leis penais. Com isso, querse dizer que, caso fosse observada a ampla devolutividade dos recursos defensivos que deram origem àquele entendimento, poderia a Corte ter concluído que, a partir do emprego de um critério diverso de conflito, só um dos tipos penais em questão poderia incidir à conduta, qual seja, o do art. 306 da Lei n.º 9.503/97.

Explica-se. Ainda dos ensinamentos de Horta, depreende-se que a relação consuntiva ocorre quando, no caso concreto, a potencialidade lesiva de uma conduta delitiva esgota-se por completo no desdobramento lógico-causal de outra, qual seja, aquela que orienta finalisticamente o agente, sendo esta suficiente para abranger o desvalor da conduta como um todo.

A seu turno, a subsidiariedade possui contornos distintos, referindo-se a uma relação havida no campo da abstração entre dois tipos penais, os quais descrevem graus ou etapas de ofensa diferentes o mesmo bem jurídico. Isto é, tem-se um tipo principal e um subsidiário, sendo que este somente poderá prevalecer quando não se alcançar o grau de afetação ao bem jurídico descrito pelo primeiro. E isso é o que ocorre entre as figuras dos arts. 306 e 309 do Código de Trânsito Brasileiro.

O tipo previsto no art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro incrimina a conduta daquele que dirige veículo automotor “em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano”, ao passo em que aquele outro tipo penal sanciona de forma mais gravosa a conduta de quem conduz veículo automotor "com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência".

Sem maiores esforços, denota-se que a razão de existir de ambos tipos penais é a tutela da segurança viária, isto é, a incolumidade das pessoas e dos seus patrimônios nas vias de circulação pública[11]. O fato é que, enquanto o primeiro tipo penal exige a criação de um perigo concreto e real de dano para sua consumação, não bastando a condução desautorizada de veículo automotor, o segundo incrimina uma conduta de perigo abstrato, presumindo a colocação da segurança viária em risco pelo condutor que está sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.

O leitor deve observar que a exigência da criação de um perigo de dano mostra-se imprescindível para a consumação no primeiro caso. Pode ter pensado o legislador, possivelmente, que nem sempre a ausência de autorização formal para a condução veicular implica em inaptidão para fazê-lo adequadamente - afastadas eventuais valorações morais, a experiência cotidiana muitas vezes revela o contrário.

Por outro lado, o mesmo legislador entendeu que a concentração alcoólica acima dos limites previstos no §1º do art. 306 é suficiente para presumir um perigo iure et de jure, dispensando a exigência de demonstração de efetivo risco para fins de consumação do delito, como a condução anormal do automóvel. O tipo penal nem sequer prevê a possibilidade de um dano em decorrência da conduta, o que permite concluir que o mero agir do sujeito é por si só representativo de desvalor.

Os delitos de perigo abstrato, como é o caso do mencionado art. 306, revelam uma gravidade muito maior em relação às condutas de perigo concreto. O legislador, sem ao menos cogitar se o indivíduo embriagado está realmente gerando um risco efetivo à incolumidade alheia, cominou-lhe sanção penal em patamar superior àquele que apenas conduz veículo automotor de forma desautorizada. É dizer: a segurança viária está necessariamente comprometida, submetida a um risco, quando um indivíduo dirige embriagado. O mesmo não se poderia afirmar com certeza a respeito do condutor desautorizado.

A provocação que se pretende fazer neste artigo então se apresenta. Haveria a prática de infrações penais autônomas por parte do indivíduo que assume a direção de veículo automotor de forma desautorizada e sob a influência de álcool? O agente apenas não avança nas diferentes etapas de afetação ao mesmo bem jurídico tutelado, atingindo um patamar superior de risco à segurança viária, razão pela qual deve ser afastada incidência do tipo penal subsidiário? São conclusões possíveis e que, decerto, merecem aprofundamento doutrinário.

Em face do exposto, conclui-se que o Superior Tribunal de Justiça se equivoca quando afasta por completo a tese de consunção entre as duas condutas delitivas em questão e, ao mesmo tempo, não avança na análise da relação valorativa entre elas, o que lhe permitiria constatar que apenas um dos tipos penais em conflito deveria prevalecer, operação necessária em nome do non bis in idem.

REFERÊNCIAS

[1] LAURIA, Thiago. Direito Penal: Conflito Aparente de Normas Penais. Disponível em:

[2] HORTA, Frederico. Elementos fundamentais da doutrina do concurso de leis penais e suas repercussões no direito penal brasileiro contemporâneo. Direito Penal e Processual Penal Contemporâneos. Coord. Eugênio Pacelli, Nefi Cordeiro e Sebastião dos Reis Júnior. São Paulo: Atlas, 2019. pp. 49-72.

[3] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002.

[4] STJ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 8/11/2023, DJe de 13/11/2023. Teor disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?b=SUMU&sumula=664

[5] AgRg no AgRg no AREsp 1556343 SC, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 6/10/2020, DJe de 13/10/2020; AgRg no AREsp 1791009 MS, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 16/3/2021, DJe de 19/3/2021; AgRg no REsp 1980074 MS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 7/6/2022, DJe de 14/6/2022.

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral – vol. 1. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 265.

[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

[8] Súmula 456 do STF: "O Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie".

[9] Art. 255, §5º, RISTJ, "No julgamento do recurso especial, verificar-se-á, preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela negativa, a Turma não conhecerá do recurso; se pela afirmativa, julgará a causa, aplicando o direito à espécie, com observância da regra prevista no art. 10 do Código de Processo Civil".

[10] HC 231330 AgR, Relator(a): FLÁVIO DINO, Primeira Turma, julgado em 18-03- 2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 20-03-2024 PUBLIC 21-03-2024.

[11] Art. 1º, §2º, da Lei n.º 9.503/97, "O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito".

Eduardo Nunes Carvalho: Associado do ICP Jovem. Assistente de Gabinete no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Graduando na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

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