Lívia Cardoso Louzada
Sob a ótica da ética médica hipocrática, tradicionalmente adotada, rege-se a máxima salus aegroti suprema lex, isto é, ideia de que a saúde do paciente é a lei suprema da medicina[1]. No plano jurídico, essa orientação consagrava o “direito do médio de submeter o paciente ao tratamento que julgasse mais conveniente, promovendo-lhe a saúde ainda que sem o seu consentimento ou contra a sua vontade”[2].
No cenário Democrático-liberal, a perspectiva anteposta passou por significativas transformações relativas à sua orientação ética e à sua compreensão dogmática[3], fato que proporcionou a criação de um modelo ético colaborativo, fundado no respeito à autonomia, por meio do qual se exige a participação do paciente no processo decisório sobre as operações médicas às quais deseja se submeter[4].
Nesse alinhamento, legitimam-se as intervenções médicas lastreadas no consentimento válido do paciente, cuja eficácia condicione-se à tomada de decisão autônoma pelo indivíduo. Em outras palavras, implica dizer que ninguém, nem mesmo médico, pode determinar em quais situações deve o paciente sacrificar a sua integridade corporal a fim de promover o melhoramento da sua saúde[5].
Conforme ensina Siqueira, os bens jurídicos individuais compreendem não apenas o próprio bem individual, mas também a autonomia do seu titular[6]. Consequentemente, toda intervenção na integridade física de alguém contra a sua vontade autônoma, ainda que com o objetivo de promover o seu “bem-estar”, é desautorizada pelo direito. Somente o consentimento do paciente poderá, portanto, afastar a responsabilidade médico pela conduta que recai sobre o corpo do paciente, no entanto, na hipótese de intervenções arbitrárias, responderá o médico por lesão corporal.
Para a caracterização da lesão corporal, o art. 29 do CP requer a existência de uma ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem. Entende-se a ofensa à integridade corporal como “a alteração, anatômica ou funcional, interna ou externa, do corpo humano”[7]. Por outro lado, a segunda dimensão típica, isto é, a ofensa à saúde, compreende a “alteração de funções fisiológicas do organismo ou perturbação psíquica”[8]. A caracterização do referido delito, portanto, não exige, diferente do que argumenta a literatura tradicional, a nocividade da alteração.
Ao fim e ao cabo, constata-se que a intervenção médica não consentida, seja uma cirurgia complexa e altamente invasiva ou um simples procedimento que promova somente alterações momentâneas no corpo do paciente, viola a autonomia e a integridade física do enfermo, o que faz com que, consequentemente, ainda que visem a melhora do seu estado de saúde, configurem o crime de lesão corporal.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v.2.
GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção cirúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico. In: COSTA, Faria, et. al. (coords). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Coimbra: Studia, 2017, pp. 643-669.
HILGENDORF, Eric. Introdução ao Direito Penal da Medicina. Tradução: Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
KASECKER, Izabele. A responsabilidade penal do médico por omissão diante da recusa de tratamento pelo paciente menor de idade ou por seu representante legal. In: ESTELLITA, Heloisa; SIQUEIRA, Flávia. Direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2020.
SANTIN, Janice. Dever de esclarecimento médico no direito penal: a concretização do consentimento com base na autonomia do paciente. São Paulo: Marcial Pons, 2020.
SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
SIQUEIRA, Flávia. O paradigma de respeito à autonomia do paciente e suas implicações no Direito Penal da Medicina: em especial sobre a ilegitimidade das intervenções médicas arbitrárias. In: ESTELLITA, Heloisa; SIQUEIRA, Flávia. Direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2020.
[1] GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção cirúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico. In: COSTA, Faria, et. al. (coords). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade. Coimbra: Studia, 2017, pp. 643-669, p.644.
[2] KASECKER, Izabele. A responsabilidade penal do médico por omissão diante da recusa de tratamento pelo paciente menor de idade ou por seu representante legal. In: ESTELLITA, Heloisa; SIQUEIRA, Flávia. Direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p.81.
[3]SANTIN, Janice. Dever de esclarecimento médico no direito penal: a concretização do consentimento com base na autonomia do paciente. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p.43.
[4] HILGENDORF, Eric. Introdução ao Direito Penal da Medicina. Tradução: Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.30.
[5]SIQUEIRA, Flávia. O paradigma de respeito à autonomia do paciente e suas implicações no Direito Penal da Medicina: em especial sobre a ilegitimidade das intervenções médicas arbitrárias. In: ESTELLITA, Heloisa; SIQUEIRA, Flávia. Direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p.33.
[6]SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.92.
[7]BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v.2, p.213-214.
[8] Ibidem, p.213-214.
Lívia Cardoso Louzada: Graduanda em Direito. Diretora de Pesquisa e Extensão do Núcleo em Direito, Inovação e Negócios - NEDIN. Membro da Diretoria de Pesquisa e da Diretoria de Simulações da Comissão Jovem do ICP. Pesquisadora na Iniciação Científica vinculada ao Grupo de Estudos em Ciências Criminais – GeCrim. Membro do Grupo de Estudos em Direito Penal – FGV. Atuou como Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Problemas Fundamentais da Teoria do Delito, sob orientação do Prof. Eduardo Viana. Foi oradora na V Competição de Arbitragem Empresarial e nas X e XI Competições Brasileiras de Mediação e Arbitragem Empresarial.