Danilo Emanuel Barreto de Oliveira
Em meio ao infindo debate sobre a legitimação da intervenção punitiva é argumento menos controverso aquele que a compreende como instrumento de controle e desestímulo à vingança privada[1]. O progresso tecnológico das comunicações e relações humanas suscita nova dinâmica social, conhecida como cancelamento, que tem se revelado perigosa a esse controle[2].
Embora padeça de certa volatilidade significativa, compreende-se como conteúdo da expressão “cancelamento”, a causação de ostracismo a uma ou mais pessoas, geralmente em vingança por suposta violação de normas sociais e/ou legais[3]. As práticas de cancelamento geralmente se utilizam de mensagens e correntes via redes sociais e/ou outros canais de mídia e comunicação, visando imputar características e/ou fatos negativos às pessoas canceladas, para em contrapartida à divulgação negativa, obter como resultado a expulsão dessas pessoas de ciclos profissionais e/ou econômicos.
Tendo em vista o seu conceito e a sua usual estratégia, é importante notar que a prática do cancelamento costumeiramente ignora a vedação à autotutela, buscando por meio de sanções morais independentes das sanções aplicadas pelo Estado, provocar agravos não só à honra, mas também à vida profissional (vide caso Emmanuel Cafferty[4]) e/ou econômica dos cancelados (vide antigo caso Escola-Base[5], e casos contemporâneos, como o de Karol Conká[6]), sem respeito aos princípios constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV, CRFB/1988) e da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CRFB/1988).
O possível tratamento penal à lesividade potencialmente decorrente do cancelamento é bastante deficiente. Caso o cancelamento se utilize da consumação de injúria (art. 140, CP), salvo seja essa considerada injúria racial (art. 140, §3º, CP), a sanção penal correspondente, além de multa, será na maioria das vezes de detenção inferior a um ano, ainda que acrescida à pena a causa de aumento relativa à sua ocorrência ter se dado por meio facilitador à sua divulgação (internet, meios de comunicação, etc) (art. 141, III, CP). Caso o cancelamento se utilize de calúnia (art. 138, CP) ou difamação (art. 139, CP), caberá sempre a possibilidade de retratação em momento anterior à sentença (art. 143, CP). Em desfecho às variações hipotéticas, os institutos de justiça negocial também se demonstram alternativa cabível para a maior parte dos casos de cancelamento.
É a conclusão deste pequeno texto: existe para controle de uma prática de vingança privada com potencial de agravos capazes de levar não só a honra, mas a vida profissional e/ou econômica de uma ou mais pessoas à ruina, prescrições sancionatórias manifestamente deficientes (Untermaßverbot[7]), seja em termos de bem jurídico, por ignorar o caráter pluriofensivo do conteúdo socialmente relevante do cancelamento (que atinge não só a honra, mas também o patrimônio, bem jurídico protegido com maiores preceitos secundários, como se depreende dos tipos elaborados a partir dessa referência argumentativa[8]), seja em termos de pena, vez que a extinção da punibilidade por retratação ou por institutos de justiça negociada revela-se, nestes casos, tratamento inapto a causar o desestimulo da vingança privada.
[1] GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral – 12ª ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. p. 113
[2] LAMÊGO, Rafaela, DE FREITAS, Aquino Rodrigues. O fenômeno da autotutela nas redes sociais: ofensa à honra e privacidade como forma de vingança privada. Periódico dos Discentes da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. p.121-139.
[3] NORRIS, Pippa. Closed minds? Is a ‘Cancel Culture’ Stifling Academic Freedom and Intellectual Debate in Political Science?. Harvard Kennedy School. Harvard. 2020.
[4] MOUNK, Yascha. Stop Firing the Innocent: America needs a reckoning over racism. Punishing people who did not do anything wrong harms that important cause. Newspaper The Atlantic. Boston, 27 jun. 2020. Disponível em: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/06/stop-firing-innocent/613615/. Acesso em: 16 fev. 2021.
[5] BAYER, Diego; AQUINO, Bel. Da série ‘julgamentos históricos’: escola base, a condenação que não veio pelo judiciário. Revista Justificando, 10 abr. 2014. Disponível em: http://www.justificando.com/2014/12/10/da-serie-julgamentos-historicos-escola-base-a-condenacao-que-nao-veio-pelo-judiciario/. Acesso em: 16 fev. 2021.
[6] MAIA, Luiza. Tombar custa caro: Karol Conká pode sofrer prejuízo de R$ 5 milhões. Revista Eletrônica Veja Rio, 5 fev. 2021. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/beira-mar/karol-conka-prejuizo-5-milhoes/. Acesso em: 17 fev. 2021.
[7] Não obstante o princípio da proporcionalidade seja frequentemente invocado para denunciar excessos punitivos desnecessários e/ou desproporcionais (Übermaßverbot), é preciso lembrar que o mesmo princípio possui dupla faceta, sendo também violação ao princípio da proporcionalidade a proteção insuficiente de bens jurídicos (Untermaßverbot).
[8] Vide penas abstratas dos tipos penais referentes aos crimes contra o patrimônio, localizados no Título II da Parte Especial, do Código Penal.
Danilo Emanuel Barreto de Oliveira: Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal pela UFMG. Especialista em Compliance, Governança, Controles e Riscos pelo CEDIN. Membro das Diretorias de Pesquisa e de Projetos Sociais do ICP Jovem.