Ícaro Vieira
Diversas foram as contribuições trazidas pela lei 13.964/19, que busca, conforme sua exposição de motivos, “aperfeiçoa[r] a legislação penal e processual penal”, através da alteração de 13 (treze) leis que se interligam com o sistema de justiça criminal.
Apesar de sua extensão, as contribuições trazidas pelos arts. 158-A a 158-F, do Código de Processo Penal, se destacam. Estes dispositivos disciplinam a “Cadeia da Custódia da Prova” que deve ser entendida como “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte[1]”.
Mesmo diante da existência de outros dispositivos normativos que já disciplinavam o tema – Portaria nº 82/2014, do MJSP, a título de exemplo – a lei introduziu mudanças significativas ao ordenamento processual, não se encontrando naquelas modificações suspensas pela liminar do Ministro Luiz Fux proferida nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.
Através da exigência da “prática de uma série de atos, um verdadeiro protocolo de custódia, cujo passo a passo vem dado pelo art. 158-B e seguintes[2]”, o legislador buscou a identificação entre a prova colhida com a analisada no momento da decisão judicial, seja esta interlocutória ou terminativa. Forneceu-se, conforme GERALDO PRADO, “um sistema de controle epistêmico da atividade probatória que assegura (e exige) a autenticidade de determinados elementos probatórios”.
Ou seja, as mudanças trazidas pela lei 13.964/20 pretendem “estabelecer um procedimento regrado e formalizado, documentando toda a cronologia existencial daquela prova [com intuito] de permitir a posterior validação em juízo e exercício do controle análise[3]” ou “assegurar a idoneidade dos objetos e bens apreendidos, de modo a evitar qualquer tipo de dúvida quanto à sua origem e caminho percorrido durante a investigação criminal e o subsequente processo criminal[4]”.
A inobservância destes procedimentos positivados possibilitaria o que se chama “quebra da cadeia de custódia das provas[5]”, o que, por consequência, promove “inevitável dúvida quanto ao grau de fiabilidade do material probatório[6]”.
Apesar da inovação trazida, a positivação não dispôs acerca de qual a consequência da eventual quebra da cadeia de custódia, ou seja, não se sabe, a partir da leitura crua da legislação, se é necessário a exclusão dos elementos probatórios – prova ilegítima – ou, se, o magistrado pode avaliar a fiabilidade e a custódia dos elementos, podendo eventualmente utilizá-los em eventual prolação judicial, mesmo que estes elementos não se demonstrem como totalmente confiáveis – livre convencimento probatório.
Entretanto, mesmo diante do silêncio da lei, é necessário frisar que o artigo 157, do Código de Processo Penal, dispõe, expressamente, que as provas ilícitas ou as derivadas, são inadmissíveis e devem ser desentranhadas, logo, caso não foi observado o procedimento de coleta trazido pelo código, esta deve ser considerada ilegítima, devendo ser retirada dos autos.
Deste modo, ao se deparar com a quebra de cadeia de custódia, o magistrado não pode ignorar a desconfiança existente naquele material probatório e fornecer tratamento diferenciado ao que comumente teria com a prova ilícita. Deve-se ordenar a extração do material duvidoso e impossibilitar a sua valoração.
Pensar o contrário e defender que fica a cargo do magistrado determinar o grau de fiabilidade da prova, podendo utilizá-la, ou não, para embasar eventual título penal condenatório viabiliza a ineficiência da inovação legislativa, reduzindo-a em mera verificação de cumprimento das etapas, sem consequências precisas em caso da não observância da lei.
Ademais, diante da mentalidade inquisitória existente nos tribunais, qualquer entendimento que possibilite o aproveitamento do material duvidoso é passível de tornar a legislação, que pretende fornecer resguardos ao indivíduo submetido a persecução criminal, ineficiente. Ou, em outras palavras, o Processo Penal que fornece instrumentos para limitar o poder punitivo resta ineficaz diante das elasticidades do trato judiciário.
Por fim, é essencial frisar que, por mais que os atos judiciais se diferenciem dos atos administrativos praticados pelas autoridades policiais, a decisão de inadmitir práticas ilícitas no momento da coleta da prova, possui “efeito dissuasório[7]”, ou seja, quando o judiciário não aproveita atos praticados em desconformidade com a legislação, as forças policiais se sentem obrigadas a ter mais cuidado ao realizar sua atividade.
Deste modo, em eventual quebra da cadeia de custódia, essencial a retirada deste material, seja para resguardar de eventual condenação que se baseie em material que não seja confiável, seja para demonstrar que as forças policiais devem se adequar a melhor forma da coleta da prova.
[1] PRADO, Geraldo. “Prova Penal e sistema de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos.” São Paulo, Marcial Pons, 2019
[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020. P. 651
[3] Id. p. 457
[4] Lima, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. 1.952 p. 717
[5] Break on the chain of custody
[6] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 81.
[7] Deterrent effect - PRADO, Geraldo. “Prova Penal e sistema de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos.” São Paulo, Marcial Pons, 2019. P. 130.
Advogado criminalista. Pós-Graduando em Ciências Penais pela PUCMINAS. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMINAS). Foi monitor de Direito Processual Penal I e II. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Diretor do Instituto de Ciências Penais, em sua categoria Jovem (ICP Jovem). Mais informações: http://lattes.cnpq.br/0014488517155995 Email: icvieiramg@gmail.com