Amanda Souza Batista
Inicialmente, cumpre salientar que não se pretende, neste pequeno ensaio, repudiar qualquer medida que se propõe limitar e reduzir o grande encarceramento, no entanto, necessário se faz uma reflexão crítica no que tange à perpetuação da seletividade penal, que passa a ser vista com naturalidade pelos operadores do direito e pela sociedade.
O poder seletivo do Direito Penal se faz presente tanto na fase legislativa quanto na fase judicial. Sabe-se que a seletividade penal tem como clientela preferencial justamente a camada da população que é aleijada dos direitos fundamentais.
Na verdade, o discurso legitimador do Direito Penal é instrumento devassador que não cumpre sua função anunciada, pelo contrário, costuma ser mais violento, danoso e letal do que o próprio crime si.
Exatamente neste contexto de seletividade penal legislativa está inserido o Pacote Anticrime, Lei n. 13.964/19, publicado em 24 de dezembro de 2019, o qual introduziu formalmente no ordenamento jurídico brasileiro o instituto de não persecução penal.
De acordo com o art. 28-A, o Ministério Público poderá (deverá) deixar de oferecer denúncia criminal em face do investigado, desde que ele preencha os requisitos da confissão formal e circunstanciada de crime sem violência e cuja pena mínima seja inferior a 04 anos:
“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
Verifica-se, dos requisitos para celebração do acordo de não persecução penal, que o Direito Penal continua reservando aos mais vulneráveis o que se tem de mais cruel e danoso, a privação da liberdade.
Isso porque, a população carcerária é formada em sua esmagadora maioria por homens, negros, jovens e com baixa escolaridade. A massiva maioria dos presos sequer completou o ensino fundamental, sendo raridade presos com nível superior.[1]
Importante salientar, também, os dados acerca dos tipos de crimes mais frequentes praticados pela população carcerária, que se tratam de delitos contra o patrimônio e tráfico ilícito de entorpecentes (aproximadamente 65%).
O jurista Zaffaroni explica que, quanto maior for o estado de vulnerabilidade em que se encontra a pessoa, menor será o seu esforço pessoal para ser alcançado pelo punitivismo estatal. O inverso também é verdadeiro. Pessoas que possuem o grau reduzido de vulnerabilidade demandam um esforço muito maior para se colocar em situação de imposição de pena pelo Estado. Esta é a premissa da seletividade de um direito penal desigual.[2]
Assim, a probabilidade maior ou menor de ser criminalizado depende das variáveis acerca dos fatores de riscos do grau de vulnerabilidade.[3] Ao passo que nos crimes denominados de colarinho-branco a “impunidade” é alta devido ao baixo grau de vulnerabilidade de seus agentes; lado outro, nos crimes grosseiros, existe uma atuação repressiva das agências, já que os atores se enquadram no estereótipo da clientela preferencial do Direito Penal.[4]
Dessa forma, se não fosse suficiente a impunidade inerente ao baixo grau de vulnerabilidade daqueles que ocupam o topo da pirâmide, com o advento do acordo de não persecução penal, essa faixa privilegiada da população continuará distante do alcance do braço punitivo estatal, por outro lado, os “marginalizados” não terão direito a essa benesse, especialmente pelos crimes comumente praticados.
Conforme leciona o Professor Aury Lopes Jr., é desolador a opção da gestão da pobreza por meio do Direito Penal e não através de políticas públicas. O direito penal acaba por servir à sociedade com seu papel excludente dos marginalizados.[5]
Imprescindível que o Estado Democrático de Direito, além de garantir a possibilidade de participação política, deve, também, eliminar (ou, ao menos reduzir) todas as formas de violência estrutural e violência institucional.[6]
Nesse diapasão, deve-se estar atento à realidade social e aos respectivos conflitos concretos a fim de que se possa legislar de forma adequada, não atendendo apenas interesses de determinada classe abastada e dominante.
[1] BRASIL. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil. Secretaria -Geral da Presidência da República. Brasília, 2014a. Disponível em: <http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0009/3230/mapa-encarceramento-jovens.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
[2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. Revista Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, ano 9, n. 14, p. 31-48, 2004.
[3] GUILHERME, Lázaro Samuel Gonçalves. Coculpabilidade penal: uma questão social - Belo Horizonte: Editora. D'Plácido, 2018.
[4] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pag. 177.
[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pag. 22.
[6] NUNES, Leandro Gornicki. Culpabilidade e exculpação: o conflito de deveres como causa (supra) legal de exculpação no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, pag. 145.
AMANDA SOUZA BATISTA
Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS, graduada pela PUC Minas e Presidente do ICP Jovem.